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Sara Bichão confirma-se como uma das mais interessantes artistas surgidas nos últimos anos

Numa colectiva do Atelier Museu Júlio Pomar e numa individual inaugurada no Museu Gulbenkian, Sara Bichão confirma-se como uma das mais interessantes artistas surgidas nos últimos anos.

Sara Bichão (n. 1986) tem exposto regular embora discretamente em Portugal, em espaços de exposição de natureza muito diversa. De várias individuais e colectivas em que participou, é de destacar uma apresentação do seu trabalho na Galeria Quadrum em 2013, numa altura em que se falava também das diferentes residências artísticas que efectuava fora do país. Destas, uma em Nova Iorque e outra em Clermont-Ferrand – de que resulta um das duas exposições de que damos aqui conta – são de assinalar. A primeira permitiu à artista avançar para uma internacionalização da carreira que com que outros colegas seus, até mais velhos, apenas podem sonhar. Em Portugal, a marca de um reconhecimento importante do seu trabalho chegou em finais de 2017, quando foi escolhida por Delfim Sardo e Luiza Teixeira de Freitas para integrar a selecção de artistas em Curar e Reparar, a bienal de arte que teve lugar em Coimbra. Nas salas do convento de Santa Clara a Velha, o trabalho escultórico desta artista formada em pintura, e que constantemente deixa a pintura transparecer nos interstícios da escultura, surpreendia pelo inusitado das formas e pela complexidade cromática, em autêntica rota de colisão com a elegância clássica, a preto e branco, de outros participantes.

Tem agora em Lisboa duas exposições. A primeira, Chama, é uma colectiva que junta, no Atelier Museu Júlio Pomar (AMJP), a obra desta artista com a de Rita Ferreira e a do próprio Pomar. Um dos propósitos desta instituição é, nas palavras da sua directora e curadora, Sara Antónia Matos, o de apresentar e promover o trabalho de jovens artistas. Para esta exposição, escolheu um conjunto de assemblages e de desenhos sobre papel de Pomar, que dialogam com desenhos fortemente coloridos, resultado de um gesto rápido e largo sobre a folha de papel, de Rita Ferreira; e com uma selecção ecléctica de peças de Bichão, entre as quais avulta uma escultura em diagonal, a atravessar todo o espaço expositivo, que lembra uma gigantesca funda presa ao chão por uma grande pedra. No eixo da peça, um espelho côncavo abarca a imagem deformada da sala e dos visitantes, resultado de uma muito bem conseguida síntese entre escultura e pintura. Outras peças suas fixam-se também numa abordagem tridimensional do espaço expositivo, mostrando ora volumes que convocam a escultura mas que estão pintados de cores francas; ora peças penduradas na parede em formas sinuosas, lembrando uma linha desenhada que se tivesse autonomizado relativamente às normas habituais desta disciplina.

A propósito da obra desta artista, Sara Antónia Matos fala de uma práxis da escultura que é terapêutica, o que justifica assim a sua inclusão no grande tema que coligiu peças de dezenas de autores em Coimbra, por ocasião da bienal já referida. De certo modo, liga a o trabalho desta artista a outros criadores – sobretudo criadoras -, como Louise Bourgeois, Ana Mendieta, Marina Abramovic (lista que poderia também incluir uma jovem Paula Rego). Poderíamos ir mais longe, e referir que arte e magia, arte e cura, arte e exorcismo ou domínio de um mundo tantas vezes assustador sempre foram binómios que andaram de mão dada, e que apenas numa visão dialéctica da produção artística se pode imaginar que eles hoje não fazem já sentido. No fundo, isto reverte a interrogar o porquê do fazer arte, uma pergunta que, como bem sabe qualquer artista, tem uma resposta que nunca será definitiva. Como se o que importasse mesmo fosse perguntar, mais do que responder, para conjurar o desaparecimento, a morte.

A exposição no Museu Gulbenkian parte justamente de uma experiência de quase-morte, real ou fictícia, que a artista teve ao nadar no lago formado numa cratera de vulcão na Auvergne, em 2017. A exposição – Encontra-me, mato-te -, convoca objectos  que trabalham a sensação de perda total das referências espaciais, a ausência de peso que o acto de nadar permite imaginar, e também a exposição de objectos miniaturizados que, com uma série de desenhos a preto sobre suporte esbranquiçado, explicitam a experiência traumática que a arte serve aqui para exorcizar.

Na montagem, avulta numa das salas uma espécie de grande rede suspensa, repleta de dedeiras de plástico cheias de água. Como já sucedia em Chama, para além da interpretação possível, deve-se aqui falar das relações que as várias peças estabelecem entre si: peso, leveza, tensão, distensão, grande, médio, minúsculo, e finalmente duas formas vagamente antropomorfas feitas ora de cor, ora de luz led (o que afinal acaba também por ser cor, pintura) encontram a sua síntese no auditório, onde uma “Estela” de tela esticada, como um disco solar ou o recorte de uma cratera vista do seu fundo, se equilibra no tecto. Já não estamos aqui perante uma arte que exorciza, mas sim perante uma arte que recorda, uma anamnese.

LUÍSA SOARES DE OLIVEIRA

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